A inexigibilidade de conduta diversa e os crimes tributários ante a pandemia de COVID-19

08/07/2020

Compartilhe:              


Tendo em vista a atual pandemia, decorrente do enfrentamento ao vírus Covid-19, surgem diversos questionamentos acerca de atrasos no pagamento de obrigações tributárias.

Primeiramente, cabe analisarmos o conceito analítico de crime tripartido, conceito esse vigente na aplicação de nossas leis penais, para ele o delito se configura a parir de três elementos:

A tipicidade;

A antijuridicidade;

culpabilidade.

O elemento importante para o nosso raciocínio é a culpabilidade, uma vez que essa é composta pela imputabilidade do agente, pelo potencial de consciência da ilicitude (compreensão que a conduta é ilegal) e pela exigibilidade de conduta diversa (por ser ato repreensivo exige-se que o agente aja de outra maneira).

Assim, para que uma conduta seja culpável, ela deve ter previsão legal, ser consciente e ser exigível que o seu proceder seja diverso do que fora cometido. Por exemplo há previsão legal para o homicídio, portanto se um indivíduo mata alguém, sabendo que estava cometendo tal ato, sem nenhuma excludente (por ausência de imputabilidade, por ausência de potencial conhecimento da ilicitude e por ausência da culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa), age criminosamente sendo passível de ser criminalizado por homicídio.

Para o ponto que estamos querendo chegar, devemos nos atentar para a excludente de culpabilidade chamada inexigibilidade de conduta diversa, qual afasta o elemento “exigibilidade de conduta diversa”, ou seja, se um dos elementos que compõem a culpabilidade é excluído, a conduta deixa de ser considerada culpável, e, portanto, gerando não ocorrência da culpabilidade.

Assim, é possível afirmar que, não se poderia exigir do agente conduta diferente daquela que ele efetivamente praticou, sendo inexigível uma conduta diversa da que fora praticada, por isso o nome dessa excludente.

Desse modo, fatos que gerem condutas que não poderiam ser procedidas de outra maneira geram uma excludente de culpabilidade, como por exemplo uma coação moral irresistível, obediência hierárquica.

Ainda, por tal teoria é consolidado em nossa jurisprudência que a existência de elementos que comprovem dificuldades econômicas empresariais enseja no reconhecimento judicial de inexigibilidade de conduta diversa, justificando a exclusão da punição do eventual crime tributário.

Como no caso em que a 8ª turma do Tribunal Regional Federal da 4ª região deu provimento a apelação criminal, absolvendo um empresário do crime de sonegação de contribuições previdenciárias, considerando que a empresa enfrentava dificuldades financeiras, assim impedindo a realização dos pagamentos.

Na ocasião desse julgamento o relator considerou que, para que seja admitido o reconhecimento da inexigibilidade de conduta diversa, é necessário que tais dificuldades sejam graves, “a indicar a real ausência de condições de saldar o compromisso. A omissão no recolhimento do tributo deve revelar-se uma medida última”.Ao que o Excelentíssimo Desembargador Gebran Neto postulou “A situação evidenciada, assim, demonstra ser crível a existência de condições anormais suportadas pela sociedade empresarial e que lhe retiraram a possibilidade de honrar todos os débitos, impondo-se o reconhecimento da excludente de culpabilidade da inexigibilidade de conduta diversa.”[1]

 Assim, no caso supracitado fora reconhecida a excludente de culpabilidade de inexigibilidade de conduta diversa, para absolver o acusado das imputações. O voto foi seguido à unanimidade pela 8ª turma do TRF da 4ª região.

Nesse mesmo sentido temos diverso julgados, colacionamos o habeas corpus a seguir:

PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA (ART. 168§ 1ºI, DO CP). ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO. DOLO ESPECÍFICO. NÃO-EXIGÊNCIA. PRECÁRIA CONDIÇÃO FINANCEIRA DA EMPRESA. NÃO-COMPROVAÇÃO. EXCLUDENTE DE CULPABILIDADE. INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. INAPLICABILIDADE. ORDEM DENEGADA. … 2. A inexigibilidade de conduta diversa consistente na precária condição financeira da empresa, quando extrema ao ponto de não restar alternativa socialmente menos danosa do que o não recolhimento das contribuições previdenciárias, pode ser admitida como causa supralegal de exclusão da culpabilidade do agente. Precedente: AP 516, Plenário, Relator o Ministro Ayres Britto, DJe de 20.09.11. HC 113418. Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 24/09/2013.[2]Grifo nosso.

Portanto, se o empresário deixa de recolher tributos à Fazenda Estadual ou ao Fisco Federal, por conta de uma comprovada grave crise econômica, existe a possibilidade que seja reconhecida a inexigibilidade de conduta diversa, não gerando punição por crime contra a ordem tributária.

Uma vez que o Estado compreende que pagamentos de funcionários, fornecedores e de outras dívidas “essenciais” são prioritários ao pagamento de tributos, para que seja mantida a higidez da empresa, não havendo possibilidade de se exigir que os empresários optem por condutas diversas.

Dessarte, há de se ponderar caso a caso, para que seja feita uma análise se houve um inadimplemento fiscal ou se de fato houve alguma intenção fraudulenta. Ou seja, vale muito a análise do caso concreto, corroborada por toda a sorte de provas que se possa conseguir, ou por bases de conhecimento amplo, inquestionáveis.

Desse modo, na atualidade, com a pandemia de COVID-19, temos um caso concreto que assola toda a população mundial, gerando impacto direto nas relações econômicas, sendo reconhecido pelos entes estatais com calamidade pública, gerando diversos decretos e prorrogações para adimplementos de toda ordem.

Ademais com as possibilidades de suspensão ou diferimento do recolhimento de tributos, conferidos durante a pandemia, para a esfera tributária, nos parece claro que se possa entender que os atos cometidos pelos entes estatais de limitações de circulação, fechamento de empresas, bem como todas as demais percalços advindos da atual pandemia, também sejam valorados na esfera criminal.

Assim, com toda a dura carga tributária que sofrem os empresários do nosso país, enfrentando uma pandemia mundial, com a maioria das empresas fechadas, sem que haja uma previsão de retorno a “normalidade”, é de se esperar que o Estado veja como inexigíveis as condutas desses que, porventura atrasem, ou não consigam honrar por certo período, com o pagamento de alguns tributos, devendo ser aplicada a teoria de inexigibilidade de conduta diversa, não enquadrando tais condutas em crimes, mas sim em meros inadimplementos.

O escritório Crippa Rey Advogados seguirá atento aos desdobramentos legais do cenário atual, primando para que sejam dado o devido tratamento a todos os que sofrem com as condições impostas pelos entes estatais.

 

____________

[1] https://migalhas.com.br/arquivos/2019/11/art20191101-03.pdf

[2] HC 113418. Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 24/09/2013.


Cadastre na nossa NEWSLETTER e recebe notícias em primeira mão.