A INSEGURANÇA JURÍDICA DIANTE DA CRIMINALIZAÇÃO PELA INADIMPLÊNCIA DO ICMS DECLARADO

16/01/2020

Compartilhe:              


O Plenário do Supremo Tribunal Federal, por maioria, no final do ano de 2019, decidiu que através do julgamento do Recurso Ordinário em Habeas Corpus (RHC) nº 163334[1] que “o contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do artigo 2º, inciso II, da Lei 8.137/1990,”[2] que comina pena de detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

O Ministro Relator Roberto Barroso, entendeu que o valor do ICMS cobrado do consumidor não integra o patrimônio do comerciante, o qual é mero depositário desse ingresso de caixa que, depois de devidamente compensado, deve ser recolhido aos cofres públicos. Da mesma forma, o Presidente da Suprema Corte, Ministro Dias Toffoli também expôs que o ICMS não pertence ao contribuinte, sendo mero ingresso temporário em sua contabilidade.

Além disso, o Relator destacou em seu voto que, para caracterizar o delito (crime), é preciso comprovar a existência de intenção/vontade explícita de praticar o ilícito, isto é, a intenção dolosa do contribuinte.

Os Ministros que acompanharam o voto relator entendem que não se trata de criminalização de simples inadimplência do ICMS, mas sim da apropriação indébita pelos contribuintes que, de forma contumaz, deixam de recolher o ICMS ao Erário, no prazo legal.

Para o Doutrinador e Jurista Kiyoshi Harada, não há como enquadrar o contribuinte de imposto indireto,[3] como o ICMS, ISS, PIS, COFINS e IPI, no art. 2º, inciso II, da Lei 8.137/1990:

A conduta do devedor de imposto nada tem a ver com aquela descrita no inciso II, do art. 2º da Lei nº 8.137/90 que pressupõe a existência de dois contribuintes: o que promove a retenção ou desconto do imposto, e o que sofre a retenção ou desconto do imposto, como no caso de tributos diretos – IR e contribuição previdenciária. Nesses casos, a empresa quando promove o pagamento da folha retém na fonte o IR e a contribuições devidos por seus empregados. No imposto indireto, como o ICMS, o ISS, o IPI não há como fazer a retenção ou desconto porque o imposto está contido dentro do preço da mercadoria ou produto, juntamente com outras despesas e também a margem de lucro do comerciante. E a totalidade do preço pertence ao comerciante-vendedor.[4]

Na “operação de circulação de mercadorias” prevista na norma tributária (art. 155, II, da CF e art. 1º da LC nº 87/96) o comerciante é chamado “contribuinte de direito”, enquanto o consumidor, que arca com o ônus financeiro do ICMS, ao pagá-lo embutido no preço da mercadoria, é denominado “contribuinte de fato”.

No caso do julgamento do RHC nº 163334, o ICMS efetivamente é pago pelo consumidor (contribuinte de fato), contudo, quando o comerciante (contribuinte de direito) o declara e não o recolhe aos cofres públicos, estará praticando crime contra a Ordem Tributária tipificado no art. 2º, inciso II, da Lei nº 8.137/90.

A Suprema Corte além de estar afrontando o princípio da reserva legal, também denominado legalidade em sentido estrito (cláusula pétrea), previsto no artigo 5º, inciso XXXIX da Constituição Federal que dispõe não haver crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal (conhecido também na expressão latim como nullum crimen sine lege), também está claramente gerando insegurança jurídica.

A criação de um novo crime de “apropriação indébita tributária” através da aproximação do art. 2.º, inciso II, da Lei 8.137/90 com o art. 16 do Código Penal, é totalmente ilegal e inconstitucional, posto que o crime de apropriação indébita está disposto apenas no Código Penal, não havendo a mesma previsão na Lei nº. 8.137/90.   

Assim, a criminalização via jurisprudencial acima mostra claramente a ofensa à legalidade penal e em especial, a violação literal à Constituição Federal, na medida que a criação e edição de leis é reservado ao legislador e não a jurisprudência.

– A Insegurança Jurídica ocasionada pela decisão

A decisão proferida pela Suprema Corte acarretara à sociedade, em especial ao comércio, clara insegurança jurídica, razão pela qual certamente a decisão terá seus efeitos modulados a partir da interposição de recurso por uma das partes vencidas.

A modulação dos efeitos da decisão mostra-se necessária visto que a insegurança jurídica percorre por todos os lados, seja no âmbito administrativo, seja no âmbito judicial, não havendo clareza quanto a aplicação da decisão para os casos em tramitação no judiciário (com ou sem sentença proferida), ou para os casos que surgirem a partir de sua publicação.

Em outras palavras, caso haja a interposição de recurso para modulação dos efeitos da decisão e este pedido seja aceito, os atos praticados até o julgamento realizado pelo Plenário do STF (em 18/12/2019), não poderão ser considerados crime, mas apenas configurarão mero inadimplemento fiscal como vinham sendo compreendidos até aquele momento, sendo certo que, somente a partir do referido julgamento, é que os casos poderão ser tipificados penalmente como apropriação indébita.

Mas, ainda assim, permanece a dúvida: a criminalização será aplicada para novos casos, ou apenas para casos que se encontram em discussão na esfera judiciária, mas que não tenham decisão transitada em julgado?

A insegurança jurídica do entendimento da Corte Suprema, se mostra também pelo total subjetivismo para decidir quanto a consciência e a vontade explícita e contumaz do contribuinte de não cumprir suas obrigações com o fisco.

Para isso é preciso examinar o caso concreto e distinguir os contribuintes que enfrentam dificuldades para o recolhimento do ICMS, dos que adotam a prática incorreta/ilegítima, isto é, de forma contumaz (e dolosa), contudo, não há um parâmetro a ser seguido pelo julgador, o que acaba por prejudicar o contribuinte/comerciante, colocando este em risco e mais uma vez, ocasiona notória insegurança jurídica.

Ainda, importante frisar que no caso de ICMS declarado pelo contribuinte e não recolhido por esse aos cofres públicos, o bem jurídico tutelado é o patrimônio público, razão pela qual o crime tem caráter patrimonial e possui menor grau ofensivo.

Nesse prisma, tendo a Fazenda Pública diversos meios para a cobrança do crédito tributário seja de forma administrativa ou judicial – através da Cautelar Fiscal, a indisponibilidade de bens, o protesto, a inscrição do devedor em órgãos de proteção ao crédito e a própria execução fiscal – a aplicação de sanção extrema como a prisão é desproporcional e, assim, foi o entendimento do Ministro Gilmar Mendes no julgamento da ADI 1055/DF[5] a detenção ou prisão é uma medida executória extrema de coerção do contribuinte inadimplente.

Sabe-se que a prisão ou outras penas restritivas de liberdade são adotadas para crimes de maior potencial ofensivo tipificados pelo sistema penal brasileiro, os quais violam ou ameaçam os direitos/bens constitucionais que necessitam de maior proteção da Constituição Federal, tal como a VIDA. O que não ocorre em casos de crimes contra o patrimônio (ICMS declarado e não pago), posto que existe a possibilidade de aplicação de penas alternativas menos lesivas a estes direitos fundamentais.

Assim, está claro que a criminalização do inadimplemento do ICMS declarado causa grande mácula à segurança jurídica e causa preocupação aos contribuintes, posto que poderá ocasionar a criminalização de diversas outras obrigações tributárias principais – a exemplo do atraso no pagamento de tributo – ou quaisquer obrigações tributárias acessórias, em especialmente, a extensão da criminalização para outros impostos, como ISS.

O Escritório Crippa Rey Advogados atento às alterações que a decisão poderá gerar aos seus clientes e demais contribuintes, coloca-se à disposição para orientações e sanar dúvidas relativas ao tema, bem como para adotar as medidas judiciais cabíveis, visando a preservação dos direitos dos contribuintes.

 

[1] RHC 163.334: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5562955

[2] Art. 2° Constitui crime da mesma natureza: (…)

II – deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos;

[3] O imposto indireto é um tipo de imposto que incide sobre transações de mercadorias e serviços, sendo a base tributária os valores de compra e venda.

[4] http://www.haradaadvogados.com.br/em-poucas-palavras-38/

[5] Inconstitucionalidade da prisão civil do depositário infiel.


Cadastre na nossa NEWSLETTER e recebe notícias em primeira mão.