A INCONSTITUCIONALIDADE DO IRPFM: COLISÕES COM O SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL
A Emenda Constitucional nº 132/23 inseriu na Constituição Federal, no artigo 145, §3º, o princípio da simplicidade como um dos norteadores do Sistema Tributário Nacional. No entanto, esse princípio já parece estar sendo ignorado com a proposta do Projeto de Lei nº 1.087/25, que, ao mesmo tempo em que atualiza a faixa de isenção do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF), propõe a criação de uma nova modalidade de tributação: o Imposto sobre a Renda da Pessoa Física Mínimo (IRPFM), voltado à incidência sobre altas rendas.
A atualização da faixa de isenção era uma medida há muito aguardada, uma vez que o limite estava congelado desde 2015, ferindo o princípio da capacidade contributiva. Portanto, nesse ponto, não há reparos. O problema começa quando o projeto, sob o argumento de tributar os “milionários” — definidos como aqueles com renda anual superior a R$ 1 milhão —, propõe uma estrutura que colide frontalmente com o princípio da simplicidade.
O IRPFM incidirá sobre pessoas físicas que, a partir do ano-calendário de 2026, tiverem rendimentos totais acima de R$ 600 mil. Para fins de cálculo, serão incluídos todos os rendimentos recebidos no ano, independentemente de estarem sujeitos à tributação, serem isentos ou possuírem alíquota zero. Deduzem-se apenas algumas exceções específicas, como ganhos de capital fora de bolsa, indenizações, doações e heranças. A alíquota será de 10% sobre o total, respeitada certa lógica de progressividade.
Além disso, o PL modifica a Lei nº 9.250/95, prevendo a retenção mensal do IRPFM sobre lucros e dividendos pagos a pessoas físicas acima de R$ 50 mil mensais, funcionando como uma antecipação do imposto devido na apuração anual.
O primeiro ponto a ser questionado é se o IRPFM pode ser considerado, de fato, um imposto sobre a renda. A resposta exige análise do fato gerador e da base de cálculo. Conforme o artigo 43 do CTN, o IR incide sobre a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica de renda ou proventos de qualquer natureza, ou seja, sobre acréscimos patrimoniais. Já o artigo 44 define que sua base de cálculo é o montante da renda tributável. Ocorre que o IRPFM não se baseia necessariamente em acréscimos patrimoniais, mas sim na soma bruta de rendimentos — independentemente de sua natureza ou tratamento fiscal —, afastando-se do conceito tradicional de renda e, portanto, do enquadramento constitucional do imposto sobre a renda.
Essa característica também impede que o IRPFM seja tratado como um adicional do IR, como ocorre no caso das pessoas jurídicas com lucro superior a R$ 240 mil por ano, tributadas por alíquota adicional de 10% conforme a Lei nº 9.249/95. Naquele modelo, há clara aderência ao princípio da progressividade. Já o IRPFM, ao ignorar isenções e alíquotas diferenciadas, adota critério confuso e descolado da realidade da renda líquida.
Outro ponto sensível é a eleição dos contribuintes do IRPFM: apenas aqueles com rendimentos superiores a R$ 600 mil. Tal escolha fere o princípio da generalidade — pilar do IR ao lado da universalidade e da progressividade —, pois seleciona um grupo específico de contribuintes, contrariando a ideia de que todos estão sujeitos à tributação conforme suas capacidades. Ao dirigir a norma apenas a determinados contribuintes, o projeto se aproxima mais de um critério ideológico do que jurídico, e pode enfrentar forte resistência judicial.
Há ainda críticas à forma como o projeto trata a tributação de lucros e dividendos. A redação do artigo 16-B do PL é confusa e tecnicamente questionável, ao adotar conceitos como “alíquota efetiva” na pessoa física — um termo inexistente até então na legislação brasileira — e exigir que o IRPFM complemente a carga tributária até o patamar de 34% (referente à tributação da renda das pessoas jurídicas). O contribuinte pessoa física, portanto, pode ser penalizado caso a empresa da qual recebe dividendos não tenha alcançado essa carga na prática, criando uma responsabilidade que não é sua.
Tal modelo ignora completamente a lógica da isenção dos dividendos estabelecida pela Lei nº 9.249/95, que parte do princípio de que a empresa já foi suficientemente tributada, desonerando a distribuição aos sócios. A tentativa de revogar essa isenção via IRPFM — especialmente com essa engenharia normativa mal estruturada — compromete a segurança jurídica, a clareza da legislação e pode gerar forte desincentivo ao investimento no país.
Um exemplo evidente de distorção é a exigência de que empresas optantes pelo Simples Nacional tenham seus lucros tratados como se estivessem sujeitos à carga de 34%, para fins de incidência do IRPFM na pessoa física. Essa exigência ignora o tratamento constitucionalmente favorecido a pequenas e médias empresas e acaba penalizando empreendedores de menor porte sob a justificativa de combater os “super-ricos”.
Por fim, a escolha do patamar de R$ 600 mil anuais como critério para definir “alta renda” também é questionável. Nos projetos de Imposto sobre Grandes Fortunas, esse valor era consideravelmente maior — como no PLP 162/89, que previa a tributação de patrimônios a partir de cerca de R$ 11 milhões. O IRPFM não trata de patrimônio, mas de fluxo de renda, e ainda assim impõe a incidência de tributo sobre valores que não correspondem a fortunas, mas muitas vezes a lucros de pequenos empresários ou profissionais liberais.
Embora a intenção de reforçar a arrecadação e combater desigualdades seja legítima, ela precisa ser alcançada com respeito às balizas constitucionais. Ignorar princípios como simplicidade, generalidade, capacidade contributiva e segurança jurídica pode transformar o IRPFM em um instrumento ideológico, ineficiente e gerador de contencioso, frustrando os próprios objetivos da reforma tributária.
José Mário
Advogado do Escritório Crippa Rey Advocacia Empresarial