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COMPENSAÇÃO TRIBUTÁRIA: O STJ E A INVIABILIDADE DO PRAZO QUINQUENAL

O Crippa Rey Advogados, sempre atento às inovações legislativas, normativas e jurisprudenciais em matéria tributária e aduaneira, vem informar que No complexo cenário fiscal brasileiro, a compensação de créditos tributários consolidou-se como mecanismo fundamental para empresas recuperarem valores pagos indevidamente, especialmente após o reconhecimento judicial definitivo de seus direitos. No entanto, a constante mutabilidade das interpretações jurisprudenciais e das normas infralegais da RFB – Receita Federal do Brasil impõe aos contribuintes um desafio permanente de adequação e previsibilidade.

Nesse contexto, o recente julgamento do REsp 2.178.201/RJ, proferido pela 2ª turma do STJ, sob a relatoria do ministro Francisco Falcão, emerge como um marco jurisprudencial com potencial para reconfigurar a sistemática de aproveitamento dos créditos tributários oriundos de decisões judiciais transitadas em julgado. A decisão, que inaugurou um novo entendimento sobre o prazo prescricional para a efetivação integral da compensação, gera preocupação e instabilidade para o planejamento tributário das empresas.

Este artigo analisa as implicações dessa nova diretriz do STJ. Exploraremos o regime jurídico da compensação tributária no Brasil, os fundamentos do overruling operado pela 2ª turma e, sobretudo, demonstraremos a incompatibilidade desse novo entendimento com a realidade operacional dos contribuintes, alertando para as consequências de uma interpretação que pode esvaziar o conteúdo do direito à restituição do indébito e comprometer a segurança jurídica.

1. Fundamentos normativos da compensação tributária: Do CTN às exigências procedimentais da RFB

A compensação, enquanto modalidade extintiva de obrigações, tem suas raízes no Direito Privado, conforme previsto nos arts. 368 e seguintes do Código Civil. Contudo, no âmbito tributário, sua aplicação transcende a mera autonomia da vontade das partes, adquirindo contornos próprios ditados pelo Direito Público e pela supremacia do interesse fiscal. A compensação tributária não opera por simples encontro de contas, mas exige previsão legal expressa e o cumprimento de rigorosos requisitos formais e materiais.

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 146, inciso III, alínea “b”, reserva à LC a competência para estabelecer normas gerais em matéria de crédito tributário, prescrição e decadência. Neste diapasão, o CTN, recepcionado com status de lei complementar, em seu art. 170, autoriza a compensação de créditos tributários “com créditos líquidos e certos, vencidos ou vincendos, do sujeito passivo contra a Fazenda Pública, quando autorizada por lei”. Este dispositivo é a pedra angular da compensação tributária, funcionando como uma norma de outorga que faculta ao legislador ordinário a regulamentação específica do instituto.

No plano da legislação ordinária Federal, a lei 9.430/1996, especialmente em seu art. 74 e parágrafos, é o principal diploma a regulamentar a compensação de tributos administrados pela Receita Federal do Brasil. Essa lei estabelece as condições e o procedimento para que o contribuinte possa utilizar seus créditos, inclusive aqueles reconhecidos por decisão judicial transitada em julgado, para quitar débitos próprios. É vital compreender que a compensação tributária federal se concretiza, preponderantemente, por meio da PER/DCOMP – Declaração de Compensação, um documento eletrônico onde o contribuinte informa à RFB os débitos que pretende compensar e os créditos que possui.

O procedimento para a compensação de créditos judiciais inicia-se com o pedido de habilitação do crédito perante a RFB, conforme detalhado pela IN RFB 2.055/21 (que revogou e sucedeu a IN RFB 1.300/12, referenciada no acórdão, mas que possuía disciplina similar). A habilitação é uma etapa prévia de verificação da liquidez e certeza do crédito. A partir do trânsito em julgado da decisão judicial, o contribuinte tem um prazo para formalizar esse pedido. Uma vez deferida a habilitação, ele está apto a transmitir as PER/DCOMPs. A compensação, por sua vez, suspende a exigibilidade do crédito tributário (art. 151, III, CTN), mas a extinção definitiva da obrigação ocorre somente com a homologação pela RFB, que pode levar até cinco anos a partir da entrega da declaração de compensação.

Historicamente, a jurisprudência do STJ, em especial da 2ª turma, vinha consolidando um entendimento que mitigava a rigidez temporal. Considerava-se que o prazo de cinco anos previsto no art. 168, I, do CTN (prazo para pleitear a restituição) se aplicava ao início do procedimento de compensação – ou seja, ao pedido de habilitação -, e não ao seu esgotamento integral. A lógica subjacente era que, uma vez iniciado o processo dentro do lustro prescricional, o direito à compensação integral do crédito reconhecido judicialmente deveria ser garantido, independentemente da capacidade de absorção do crédito pelo contribuinte dentro dos cinco anos seguintes ao trânsito em julgado. Essa interpretação visava proteger a efetividade da coisa julgada e a segurança jurídica do contribuinte.

2. A ruptura jurisprudencial no REsp 2.178.201/RJ: Análise do novo paradigma

O cenário até então estabelecido foi alterado pelo julgamento do REsp 2.178.201/RJ. O caso em questão envolvia um mandado de segurança impetrado pela TERMOMACAE S.A. contra a Fazenda Nacional, buscando impedir a declaração de prescrição de créditos de PIS e Cofins reconhecidos judicialmente, cuja decisão transitou em julgado em 24/4/2009. A empresa havia formalizado o pedido de habilitação em 22/2/13, ou seja, dentro do prazo quinquenal contado do trânsito em julgado. O Tribunal de origem havia mantido o entendimento de que, uma vez iniciado o pedido de compensação dentro do prazo, a compensação poderia continuar até o esgotamento integral do crédito.

A Fazenda Nacional, no entanto, interpôs recurso especial, alegando violação a dispositivos do CTN e da lei 9.430/1996, defendendo que o prazo de cinco anos deveria ser para a transmissão de todas as PER/DCOMPs, sob pena de imprescritibilidade.

A 2ª turma do STJ, por unanimidade, deu provimento parcial ao recurso da Fazenda Nacional, reconhecendo a prescrição dos créditos indicados nas PER/DCOMPs protocoladas após 8/9/22. O ponto central da decisão reside na explícita mudança de entendimento, configurando um “overruling”. Conforme o voto do ministro Relator Francisco Falcão:

“Reapreciando a discussão, alinho-me ao recente posicionamento jurisprudencial da 1ª turma e proponho seja realizado o overruling, por entender que os julgados desta 2ª turma, na prática, acabam por tornar imprescritível o direito à repetição do indébito tributário reconhecido em sede de decisão judicial.”

O ministro relator fundamentou sua posição em dois pilares, alinhando-se à corrente da 1ª turma do STJ (notadamente, o AgInt no REsp 1.729.860/SC, rel. min. Paulo Sérgio Domingues):

A imprescritibilidade artificial do crédito: O entendimento anterior, segundo o voto, transformava o direito à restituição do indébito em algo imprescritível, permitindo que o contribuinte “retardasse ao máximo o aproveitamento do indébito, corrigido pela Selic”, cuja parcela não estaria sujeita à tributação, em virtude da decisão do STF no Tema 962/STF (afastamento da incidência de IR e CSLL sobre a taxa Selic referente à repetição do indébito). Isso, para o STJ, desvirtuaria a compensação em uma espécie de aplicação financeira, além de privar a Fazenda Pública de previsibilidade sobre o aproveitamento do crédito.

O prazo de 5 anos para o exercício integral do direito: O acórdão reafirma que o art. 168, I, do CTN, combinado com o art. 1º do decreto 20.910/1932 (que estabelece a prescrição quinquenal de dívidas contra a Fazenda Pública), impõe que o contribuinte “exerça o seu direito de pedir a devolução do indébito mediante a compensação tributária no prazo de 5 anos, a contar do trânsito em julgado da decisão judicial”. A habilitação é uma formalidade prévia que suspende o prazo prescricional apenas durante o período de análise e deferimento, mas não o interrompe, nem o torna indefinido. Todas as PER/DCOMPs, portanto, devem ser transmitidas dentro desse prazo de cinco anos, somando-se os períodos antes e depois da suspensão pela habilitação.

“O prazo prescricional iniciado no trânsito em julgado da decisão judicial e suspenso no período de análise do pedido de habilitação deve ser respeitado a cada transmissão de PER/DCOMP, porque é neste momento em que o contribuinte efetivamente exerce o seu direito de restituição do indébito, nos termos propostos pelo art. 74, § 1º, da lei 9.430/1996. Equivale dizer, portanto, que todas as PER/DCOMP precisam necessariamente ser transmitidas no prazo de 5 anos, a contar do trânsito em julgado, admitindo-se a suspensão desse lapso temporal entre o pedido de habilitação e o respectivo deferimento, conforme estabelecido no art. 82-A da IN 1.300/12.”

A decisão coloca um ônus significativo sobre o contribuinte, ao argumentar que a ele cabe “a avaliação da forma pela qual submeterá a questão de direito à análise do Poder Judiciário, estando ciente de todas as limitações envolvidas quanto à recuperação do crédito.”

3. Impossibilidade material de cumprimento: O abismo entre o prazo quinquenal e a capacidade contributiva

Ainda que a nova interpretação do STJ se fundamente na busca por previsibilidade e combate à “imprescritibilidade”, ela colide frontalmente com a realidade operacional (e jurídica) da recuperação de créditos tributários no Brasil, criando um verdadeiro dilema para o contribuinte.

Para ilustrar a gravidade da situação, consideremos o seguinte cenário hipotético (mas extremamente comum):

Uma empresa varejista ajuizou em 2017 uma ação para excluir o ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins (conforme o Tema 69/STF). Após uma tramitação judicial de cinco anos, a decisão definitiva transitou em julgado em julho de 2022, reconhecendo o direito à compensação de valores indevidamente recolhidos entre 2012 e 2021 (devido à modulação dos efeitos).

O montante total do indébito, atualizado, alcançou expressivos R$ 3.200.000,00. Contudo, a capacidade de compensação da empresa, determinada por sua média anual de débitos tributários passíveis de compensação, é de R$ 400 mil. Nesse ritmo, seriam necessários oito anos para absorver integralmente o crédito.

Diante do novo entendimento do STJ, que exige a compensação total em cinco anos a partir do trânsito em julgado (julho de 2022 a julho de 2027), a empresa conseguiria compensar, no máximo, R$ 2 milhões (R$ 400 mil x 5 anos). Isso resultaria na perda irrecuperável de R$ 1.200.000,00 – um prejuízo substancial causado não por inércia ou desídia do contribuinte, mas pela limitação de sua própria capacidade operacional (econômica).

4. Constrangimentos processuais do contribuinte: A ilusória liberdade de escolha da via judicial

A decisão do STJ sugere que “cabe ao contribuinte litigante a avaliação da forma pela qual submeterá a questão de direito à análise do Poder Judiciário”. Essa premissa, embora juridicamente correta (ao menos em tese), desconsidera a complexidade e as limitações do sistema processual.

O mandado de segurança, em matéria tributária, tornou-se o instrumento processual mais utilizado para questionar a inconstitucionalidade ou ilegalidade de exigências fiscais, e isso não se deve a uma mera “conveniência” do contribuinte, mas a imperativos estruturais e estratégicos, notadamente:

Celeridade: O rito especial do mandado de segurança é (ou deveria ser) mais célere que o rito ordinário, característica fundamental em um ambiente de negócios que exige respostas rápidas do Judiciário.

Ausência de custas e honorários sucumbenciais: Em uma ação tributária com valor de causa milionário, a ausência de custas processuais iniciais e, principalmente, de honorários advocatícios sucumbenciais (art. 25 da lei 12.016/2009) é um fator decisivo para mitigar riscos financeiros, dado que o contribuinte já arca com seus próprios honorários contratuais.

Todavia, deve-se ter em mente que as súmulas 269 e 271 do STF, bem como a súmula 461 do STJ, sedimentam o entendimento de que o mandado de segurança não se presta à cobrança de valores pretéritos, ou seja, não permite a restituição do indébito por precatório ou RPV – Requisição de Pequeno Valor. A única via de efetivação do direito à restituição de tributos pagos indevidamente reconhecidos em sede de mandado de segurança é a compensação tributária administrativa.

Dessa forma, afirmar que o contribuinte deveria “considerar o volume do crédito e escolher outro tipo de ação judicial que lhe permitisse a restituição via precatório ou RPV” ignora a realidade. Muitas vezes, a única via processual viável, considerando o valor envolvido e os riscos de sucumbência, é justamente o MS, que, por sua natureza, só permite a compensação como forma de recuperação do indébito.

Além disso, a escolha do mandado de segurança é frequentemente imposta pela incerteza jurídica inerente ao nosso sistema tributário, marcado por:

Normas ambíguas: Atos infralegais da RFB que habitualmente extrapolam o poder regulamentar.

Lentidão da justiça e a “exigência de litigar” diante das modulações de efeitos: Julgamentos de teses fiscais em sede de recursos repetitivos ou repercussão geral que demoram anos para serem concluídos e, pior, frequentemente são modulados em seus efeitos. A modulação de efeitos do Tema 69/STF é um exemplo cabal de como o contribuinte se vê forçado a litigar, muitas vezes preventivamente, sob o risco de ser excluído dos efeitos de uma decisão futura que afete diretamente seus direitos.

Portanto, o contribuinte não atua por “conveniência” ao escolher o mandado; ele age por necessidade, moldado pela arquitetura institucional brasileira, que limita as vias de efetivação de seus direitos e submete as decisões judiciais a parâmetros que transcendem a mera aplicação da lei, incorporando aspectos políticos e econômicos.

5. Erosão da coisa julgada e desequilíbrio do sistema tributário: Consequências da nova interpretação

A nova interpretação do STJ no REsp 2.178.201/RJ gera uma série de consequências preocupantes e impõe reflexões sobre o nosso sistema tributário-judicial.

Ao limitar o prazo para o esgotamento integral do crédito, a decisão, na prática, esvazia o conteúdo da coisa julgada material. De que adianta um reconhecimento judicial pleno do direito à restituição se o contribuinte não consegue usufruir integralmente desse crédito devido a uma restrição temporal que independe de sua vontade ou inércia? Isso gera uma descrença no Poder Judiciário, pois o direito reconhecido em sentença torna-se, em parte, ineficaz. O princípio da segurança jurídica, que se materializa na estabilidade das relações e na previsibilidade das consequências de atos e decisões, é abalado quando um direito, uma vez conquistado, é restringido em sua efetivação por interpretações que desconsideram a realidade.

O argumento de que a imprescritibilidade transformaria a compensação em uma “aplicação financeira” precisa ser ponderado. A correção monetária pela taxa Selic sobre o indébito tributário não é um “bônus”, mas a mera recomposição do poder de compra de um valor que foi indevidamente retirado do patrimônio do contribuinte. Afastar a incidência de IR e CSLL sobre essa correção (Tema 962/STF) é um reconhecimento de que se trata de recomposição patrimonial, e não de acréscimo de capital ou lucro. Punir o contribuinte que busca a integralidade de seu direito à restituição sob o pretexto de evitar uma “aplicação financeira” é inverter a lógica: o problema não é o contribuinte se beneficiar da correção, mas sim o Estado ter retido valores indevidamente por longos períodos.

É relevante notar que o voto condutor do acórdão cita o art. 82-A da IN RFB 1.300/12 (atual 2.055/21) como base para o entendimento de que “todas as PER/DCOMP precisam necessariamente ser transmitidas no prazo de 5 anos”. Embora o acórdão ressalve que as INs não inovam na ordem jurídica, apenas refletindo o disposto em lei, a interpretação do STJ acaba por conferir um peso normativo considerável a um ato infralegal que, na sua essência, não poderia criar uma restrição a um direito que emana de LC (CTN) e de decisão judicial transitada em julgado.

Paradoxalmente, a decisão pode incentivar a propositura de um número maior de ações judiciais para reaver créditos tributários. Empresas com grandes volumes de indébito podem se ver obrigadas a fragmentar suas demandas, buscando vias diferentes para a recuperação de créditos, ou mesmo a ingressar com execuções fiscais contra a União para forçar um “encontro de contas” via RPV/precatório, caso essa via seja mais vantajosa para determinados valores. Isso contradiz a busca por racionalidade e eficiência do sistema judicial.

O julgamento do REsp 2.178.201/RJ representa um retrocesso na proteção dos direitos do contribuinte e uma desconexão preocupante entre a interpretação judicial e a realidade fático-econômica. A imposição de um prazo de cinco anos para o esgotamento integral da compensação de créditos tributários reconhecidos judicialmente cria uma limitação que, para a vasta maioria das empresas, é materialmente impossível de ser cumprida, transformando um direito líquido e certo em um privilégio parcial, sujeito à capacidade de “consumo” tributário do contribuinte.

Não se trata de inércia do contribuinte, mas de uma impossibilidade estrutural. Penalizá-lo por não conseguir absorver vultosos créditos no prazo exíguo imposto pela nova interpretação é irrazoável e desconsidera as peculiaridades do contencioso tributário brasileiro, que muitas vezes força o contribuinte a optar pelo mandado de segurança, cuja única forma de recuperação do indébito é justamente a compensação.

É imperioso que o STJ, especialmente sua 1ª seção, em sede de eventuais embargos de divergência, revisite e reanalise essa questão. A interpretação anterior, que considerava o prazo quinquenal para o início do procedimento de compensação (habilitação), era mais coerente com a efetividade da coisa julgada, o princípio da segurança jurídica e a razoabilidade. O direito à compensação integral, uma vez reconhecido judicialmente, não pode ser tolhido por uma interpretação que desconsidera as limitações da própria Fazenda Pública em homologar rapidamente os créditos e a capacidade do contribuinte de absorvê-los.

A harmonização entre o rigor legal e a realidade prática é imperativa para a integridade do nosso sistema tributário. Quando vitórias judiciais se convertem em prejuízos patrimoniais, a confiança institucional se deteriora e o ambiente de negócios se fragiliza, comprometendo não apenas direitos individuais, mas o próprio desenvolvimento econômico nacional.

De mais a mais, o Escritório Crippa Rey Advogados encontra-se à disposição para prestar esclarecimentos, bem como assessorar as Empresas e sanar eventuais dúvidas.

 

Porto Alegre/RS, 30 de julho de 2025.

 

Rodrigo da Costa Vasconcellos

OAB/SC 50.948

Advogado do Departamento Tributário

Escritório Crippa Rey Advocacia Empresarial