CONTROLE FISCAL DE BEBIDAS E OS LIMITES DA LEGALIDADE: O CASO SICOBE
O Crippa Rey Advogados, sempre atento às inovações legislativas, normativas e jurisprudenciais em matéria tributária e aduaneira, vem informar que a recente discussão sobre a possível retomada do Sistema de Controle de Produção de Bebidas (Sicobe) reaviva o debate sobre os limites entre o controle externo e a autonomia técnica da Administração Tributária (AT).
No Mandado de Segurança 40.235/DF, no Supremo Tribunal Federal, o ministro Cristiano Zanin destacou que cabe à Receita Federal do Brasil (RFB) definir, com base em critérios de eficiência, os instrumentos de fiscalização mais adequados, e que o Tribunal de Contas da União (TCU) não pode substituir esse juízo técnico ao determinar o restabelecimento de um sistema já descontinuado.
Instituído em 2008 em parceria com a Casa da Moeda, o Sicobe monitorava a produção de bebidas frias por meio de contadores automatizados de garrafas e latas envasadas e de leitores de marca e tipo de embalagem de cada produto. O artigo 35 da Lei nº 13.097/2015 atribui à Receita a competência para tornar seu uso obrigatório ou dispensar sua aplicação. Em 2016, após avaliações técnicas que apontaram elevado custo e sua limitada eficácia, especialmente considerando a nova tributação das bebidas frias instituída pelos artigos 14 ao 34 da referida lei, o sistema foi suspenso. O ministro Zanin, em sua decisão liminar, reconheceu a legitimidade dessa medida, entendendo que a escolha do meio fiscalizatório se insere na discricionariedade técnica da Receita.
O novo conflito surge da determinação do TCU para religar o Sicobe, atualmente suspensa pela liminar do STF. A discussão envolve os princípios da legalidade, eficiência e proporcionalidade. A Constituição (artigo 150, I) e o CTN (artigo 97) exigem lei para criação de obrigações tributárias e encargos materiais ao contribuinte. Ao suspender o sistema, a RFB agiu em conformidade com a legislação e dentro dos limites de sua competência administrativa.
No caso em análise, a divergência entre o TCU e a Receita Federal, hoje sob apreciação do STF, evidencia o conflito entre o controle externo e a autonomia administrativa da AT. O TCU determinou o restabelecimento do Sicobe com base em estimativas de suposta perda de arrecadação, sem comprovar relação direta entre a desativação do sistema e eventual aumento da sonegação. A Receita, por sua vez, justificou a suspensão por critérios técnicos, afirmando que o monitoramento da produção permanece ativo por meio de sistemas digitais e cruzamento de dados de insumos, produção e faturamento.
Do ponto de vista constitucional, o controle externo não pode substituir o juízo técnico da autoridade fiscal, sob pena de violação aos princípios da autonomia administrativa e da eficiência previstos no artigo 37 da Constituição. Assim, embora o TCU exerça função legítima de fiscalização, sua atuação encontra limites na discricionariedade técnica da Receita, responsável por selecionar os instrumentos de fiscalização mais adequados. Esse entendimento foi reafirmado pelo ministro Zanin ao conceder liminar suspendendo os efeitos do acórdão que determinava o religamento do Sicobe.
Diversas decisões do STF vão na mesma direção, para preservar a discricionariedade técnica da administração (STP 1.064/RS, ARE 1.536.899/SP, e STP 766/CE). Esses precedentes confirmam que a autonomia técnica da Receita está limitada pela lei, mas não pode ser substituída pelo controle externo no mérito da gestão fiscal.
Além do aspecto jurídico, há relevante dimensão econômica. Estudo da LCA Consultoria Econômica estima que a reinstalação do Sicobe custaria cerca de R$ 1,3 bilhão por ano, contra potencial recuperação de aproximadamente R$ 453 milhões em tributos. A disparidade revela desproporcionalidade e afronta ao princípio da economicidade previsto no artigo 70 da Constituição.
O monitoramento da produção de bebidas destiladas não foi interrompido com a desativação do sistema, mas evoluiu por meio do uso das novas tecnologias, baseadas em instrumentos mais modernos, como Nota Fiscal Eletrônica, Escrituração Fiscal Digital e Bloco K, que permitem rastrear operações em tempo real, com custo reduzido e maior abrangência, exercendo vigilância inteligente sobre cadeias produtivas inteiras, e não apenas sobre a produção. Em um cenário de transformação digital, o sucessor do Sicobe não está no controle físico da produção, mas no cruzamento de dados ao longo de toda a cadeia logística, de forma mais eficiente e menos onerosos que o controle físico de produção.
Outra exploração indevida sobre o uso do Sicobe foi motivada pelos recentes episódios de intoxicação, com algumas mortes causadas pela ingestão de bebidas destiladas adulteradas com metanol, que provocaram legítima comoção social e manifestações de solidariedade às vítimas e seus familiares. Indevidamente, parte da discussão recaiu sobre o falso nexo entre a descontinuidade do Sicobe e a “facilitação” das fraudes. Esta associação não encontra fundamento técnico nem jurídico, a começar pelo fato desse sistema ter sido instituído para registrar as quantidades produzidas de cervejas, refrigerantes e águas (“bebidas frias”), sendo incapaz de aferir a qualidade dos produtos envazados.
Apontar o Sicobe como barreira contra o metanol é um equívoco conceitual. Os casos recentes envolvem a adição criminosa de metanol em destilados por produtores clandestinos. Essa fraude não se relaciona com a produção formal, fiscalizada e tributada. Nenhum contador de garrafas teria a capacidade de impedir práticas dessa natureza. Vincular os dois fatos desvia a atenção do verdadeiro problema: o enfrentamento das cadeias ilegais que abastecem esse mercado.
Aproveitar crises graves, como a causada pela presença de metanol em bebidas adulteradas, para sustentar teses infundadas que visam à reinstalação de sistemas fiscais onerosos e obsoletos não contribui para enfrentar adequadamente o problema.
A reinstalação do Sicobe, em descompasso com critérios de eficiência, configuraria retrocesso institucional e interferência indevida na autonomia técnica da AT. A experiência evidencia que a fiscalização contemporânea deve se apoiar em dados e inteligência analítica, e não no retorno a mecanismos físicos de controle.
A resposta efetiva reside na combinação de inteligência fiscal, ação repressiva qualificada e integração de bases de dados, com foco no enfraquecimento das estruturas do mercado ilícito. É essa a agenda que deve prevalecer: menos mitos e mais efetividade.
Dito isto, o Escritório Crippa Rey Advogados encontra-se à disposição para prestar esclarecimentos, bem como assessorar as empresas e sanar eventuais dúvidas.
Porto Alegre/RS, 27 de novembro de 2025.
Rodrigo da Costa Vasconcellos
OAB/SC 50.948
Advogado do Departamento Tributário
Escritório Crippa Rey Advocacia Empresarial