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VERDADEIRO TESTE DO SPLIT PAYMENT SERÁ SUA APLICAÇÃO CONCRETA

O Crippa Rey Advogados, sempre atento às inovações legislativas, normativas e jurisprudenciais em matéria tributária e aduaneira, vem informar que a Lei Complementar nº 214, de 2025, inaugurou o marco infraconstitucional da reforma tributária sobre o consumo, disciplinando o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), previstos pela Emenda Constitucional 132/2023.

Entre as inovações mais debatidas está o mecanismo do split payment, previsto no artigo 31 da LC 214/2025, que impõe a segregação e o recolhimento automático dos tributos no momento da liquidação financeira da transação. Em termos práticos, o split payment consiste em separar automaticamente, no instante da liquidação financeira da operação (pagamento da compra ou prestação de serviço), o valor correspondente ao tributo devido (no caso CBS e IBS) e direcioná-lo diretamente ao Fisco, enquanto o restante (“valor líquido” da operação) vai para o vendedor/fornecedor.

Ou seja: ao invés de o fornecedor receber o valor total da venda e depois recolher o imposto num prazo futuro, com o split payment o recolhimento está “embutido” no momento do pagamento: parte vai para o fornecedor, parte vai para o governo.

A medida é apresentada como um instrumento de eficiência arrecadatória e redução da inadimplência fiscal, inspirada em experiências europeias. Entretanto, sua introdução suscita um debate sensível: até que ponto essa inovação é compatível com os princípios da não-cumulatividade e da neutralidade fiscal, expressamente consagrados na Constituição após a EC 132/2023?

O artigo 156-A da Constituição, incluído pela EC 132/2023, estabelece que o IBS “será informado pelo princípio da neutralidade”, garantindo que o tributo não interfira nas decisões econômicas, e determina que sua incidência será não-cumulativa, permitindo a compensação integral do imposto cobrado nas etapas anteriores da cadeia.

Esses dois princípios — neutralidade e não-cumulatividade — são a espinha dorsal do novo modelo tributário sobre o consumo. A neutralidade assegura que a tributação não distorça preços relativos nem afete a competitividade entre agentes econômicos; a não-cumulatividade, por sua vez, busca evitar a tributação em cascata e garantir que o tributo incida apenas sobre o valor agregado.

Nos termos do artigo 31 da LC 214/2025, as instituições financeiras e prestadores de serviços de pagamento são obrigados a segregar o montante do IBS e da CBS no momento do pagamento, repassando-o diretamente ao fisco. O contribuinte recebe apenas o valor líquido da operação.

Em tese, o sistema promete simplificar o cumprimento das obrigações principais e eliminar o risco de inadimplência, já que o tributo é recolhido no instante da transação. Contudo, o desenho técnico do mecanismo não é neutro: ele altera profundamente a dinâmica de fluxo de caixa, a temporalidade da compensação de créditos e a própria operacionalização da não-cumulatividade.

Mais do que uma simples ferramenta de arrecadação, o split payment representa uma mudança estrutural na lógica de incidência e de circulação do tributo, deslocando o momento e o sujeito do recolhimento para o centro do sistema financeiro. Esse deslocamento confere ao fisco um protagonismo inédito na relação econômica entre as partes privadas, convertendo o ato de pagamento em ato de tributação. O desafio, portanto, não está apenas na viabilidade tecnológica do modelo, mas na preservação de suas premissas constitucionais — sobretudo a garantia de que a arrecadação automatizada não se traduza em antecipação indevida de ônus, nem em restrição prática ao exercício pleno da não-cumulatividade e da neutralidade fiscal que estruturam o novo IBS e a CBS.

O princípio da não-cumulatividade impõe que o imposto pago nas operações anteriores possa ser plenamente creditado nas posteriores. A LC 214/2025 prevê que o sistema eletrônico de split payment calculará automaticamente o montante líquido a ser repassado, “já considerados os créditos do adquirente”.

Em um plano ideal, portanto, o mecanismo preservaria a não-cumulatividade, assegurando que o débito e o crédito se compensassem instantaneamente.

Todavia, a experiência brasileira com sistemas tecnológicos complexos recomenda cautela. Caso o modelo de segregação e compensação não funcione de forma sincronizada, poderá ocorrer tributação antes do reconhecimento efetivo dos créditos, especialmente em operações interestaduais ou em setores com cadeia longa e heterogênea (como o agronegócio e a indústria).

Nessas hipóteses, o split payment converter-se-ia em instrumento de antecipação indevida de tributo, comprometendo a isonomia entre setores e violando, na prática, a não-cumulatividade assegurada pela Constituição.

A neutralidade, como princípio constitucional, demanda que o tributo seja “invisível” nas decisões econômicas. Entretanto, o split payment altera de modo substancial o fluxo financeiro das empresas, que deixam de dispor temporariamente do valor do imposto até a compensação ou restituição.

Esse descolamento temporal entre o fato gerador e o acesso aos créditos tributários produz efeitos concretos. Imagine, por exemplo, uma indústria de insumos agrícolas que comercializa fertilizantes com prazos médios de recebimento de 90 dias. Sob o regime tradicional, o valor da venda — inclusive a parcela correspondente ao imposto — ingressa no caixa, permitindo o custeio de matéria-prima e de despesas operacionais até o momento do recolhimento. No split payment, esse montante é automaticamente retido e enviado ao fisco no instante da transação, reduzindo o capital de giro disponível e obrigando a empresa a buscar financiamento bancário de curto prazo para manter sua operação. O custo financeiro dessa antecipação, ainda que indireto, rompe a neutralidade tributária ao afetar o equilíbrio econômico da atividade.

Situação semelhante ocorre no varejo e no e-commerce, em que os recebimentos são realizados via plataformas de pagamento digital. Nessas operações, a segregação automática do IBS e da CBS significará que o lojista receberá apenas o valor líquido das vendas, enquanto continuará arcando integralmente com as despesas e encargos incidentes sobre o valor bruto. A diferença temporal entre o desembolso dos custos e o recebimento líquido — agravada pelo volume de transações diárias — cria uma pressão de caixa que pode inviabilizar pequenas e médias empresas, favorecendo grandes redes que possuem reservas financeiras ou linhas de crédito mais baratas.

Até mesmo o setor de serviços é afetado, sobretudo nas atividades intensivas em mão de obra, como consultorias, tecnologia da informação e construção civil. Nessas áreas, em que as margens são estreitas e o recolhimento imediato do tributo coincide com o pagamento de salários e insumos, a retenção automática do imposto reduz a liquidez operacional e compromete a previsibilidade de fluxo de caixa.

Esses exemplos demonstram que, embora o objetivo do split payment seja combater a evasão, o efeito colateral pode ser a transferência de ônus financeiro para o contribuinte regular, configurando uma violação indireta ao princípio da neutralidade — que exige tratamento igual entre agentes econômicos, independentemente da forma de operação, porte ou instrumento de pagamento utilizado.

A arrecadação eficiente é valor constitucional legítimo, mas não é absoluto. A Constituição condiciona a eficácia do sistema tributário à observância de princípios estruturantes — entre eles, a neutralidade, a não-cumulatividade e a capacidade contributiva. O Estado pode e deve adotar instrumentos que melhorem o controle fiscal e combatam a evasão, mas não pode fazê-lo à custa do equilíbrio financeiro das empresas nem da coerência do sistema tributário.

A história recente do direito tributário brasileiro mostra que o conflito entre eficiência arrecadatória e neutralidade econômica não é novo. Há vários precedentes em que a busca por segurança da receita acabou impondo ônus indevido aos contribuintes regulares.

Um exemplo paradigmático é o regime de substituição tributária progressiva do ICMS, introduzido na década de 1990 e consolidado pela LC nº 87/1996 (Lei Kandir). Nesse modelo, o tributo devido nas operações subsequentes é cobrado de forma antecipada do primeiro elo da cadeia, presumindo-se o valor das vendas futuras. Embora eficiente sob a ótica da fiscalização, a sistemática mostrou-se onerosa e distorcida: empresas ficaram sujeitas ao pagamento antecipado de imposto sobre operações ainda não realizadas, o que afetou o fluxo de caixa e reduziu a neutralidade do imposto. O próprio Supremo Tribunal Federal, ao julgar o RE 593.849/MG (Tema 201), reconheceu a necessidade de restituição imediata do ICMS pago a maior, afirmando que a presunção de valor futuro não pode prevalecer sobre a efetiva ocorrência do fato gerador.

Outro exemplo é o regime de retenção na fonte de tributos federais (IRRF, PIS, Cofins, CSLL e INSS). A intenção é garantir arrecadação antecipada e evitar inadimplência, mas, na prática, ele antecipa o desembolso tributário para o momento do pagamento, antes da efetiva apuração do lucro ou do crédito do contribuinte. Essa antecipação gera impacto direto sobre o capital de giro, sobretudo em setores de margens reduzidas, reproduzindo o mesmo problema que se vislumbra no split payment: o fisco se antecipa ao ciclo econômico, transferindo o ônus financeiro ao particular.

Situação análoga ocorreu também com o recolhimento antecipado do ICMS-importação, exigido no desembaraço aduaneiro, muitas vezes antes da entrada efetiva da mercadoria no estabelecimento. O Superior Tribunal de Justiça, reconheceu que essa antecipação, sem previsão expressa em lei e sem observância da não-cumulatividade, poderia resultar em violação à neutralidade e à legalidade tributária, especialmente quando não assegurado o crédito correspondente.

Esses exemplos evidenciam que, embora as intenções de controle e eficiência sejam legítimas, o excesso de antecipação fiscal costuma gerar desequilíbrios sistêmicos, contrariando a própria racionalidade do tributo sobre o consumo. O split payment, ao transferir o momento de recolhimento para o instante do pagamento comercial, reproduz o mesmo fenômeno sob roupagem tecnológica: o Estado antecipa a apropriação do imposto antes que o contribuinte disponha dos recursos necessários à sua operação, restringindo a liquidez empresarial e, em certos casos, tornando o crédito tributário apenas formalmente não-cumulativo.

Por isso, o mecanismo deve ser interpretado de forma sistemática e conforme a Constituição, conciliando a busca por eficiência arrecadatória com as garantias de neutralidade e de não-cumulatividade. O legislador complementar não pode, sob o pretexto de simplificação, impor ônus financeiro desproporcional ao contribuinte ou reduzir a efetividade dos créditos tributários, sob pena de inconstitucionalidade material. Em última análise, o desafio do split payment é o mesmo que já se colocou à substituição tributária e à retenção na fonte: arrecadar de modo eficiente sem distorcer o ciclo econômico do contribuinte.

O split payment pode representar avanço no controle e na transparência da arrecadação, desde que implementado com salvaguardas constitucionais. É imprescindível que o sistema assegure a compensação automática e tempestiva dos créditos tributários; a neutralidade entre diferentes meios de pagamento e setores econômicos; e a preservação do fluxo de caixa das empresas, evitando a tributação financeira antecipada.

Sem essas garantias, o instrumento corre o risco de converter-se em um novo fator de litigiosidade tributária, reeditando o histórico conflito entre arrecadação e segurança jurídica.

Em última análise, o verdadeiro teste do split payment será prático: se, na sua aplicação concreta, ele servir à arrecadação sem comprometer os princípios da neutralidade e da não-cumulatividade, será legítimo; se, ao contrário, tornar-se fonte de desequilíbrio econômico e cumulatividade encoberta, estará em desacordo com a promessa constitucional da EC 132/2023.

Dito isto, o Escritório Crippa Rey Advogados encontra-se à disposição para prestar esclarecimentos, bem como assessorar as empresas e sanar eventuais dúvidas.

 

Porto Alegre/RS, 28 de novembro de 2025.

 

Rodrigo da Costa Vasconcellos

OAB/SC 50.948

Advogado do Departamento Tributário

Escritório Crippa Rey Advocacia Empresarial