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REFORMA TRIBUTÁRIA: PROMESSAS TRAÍDAS E OS RISCOS DE UM NOVO CAOS FEDERATIVO

A ideia originalmente proposta pelos autores da PEC 45/19 – que deu origem à Emenda Constitucional nº 132/2023 – era a de que os tributos incidentes sobre o consumo no velho regime fossem todos substituídos por apenas um: o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). Tratava-se de uma promessa de ruptura com o sistema tributário historicamente confuso, ineficiente e litigioso que imperava no país.

No entanto, ao longo dos debates legislativos, a proposta foi se moldando às pressões de estados e municípios, que reivindicaram a manutenção de competências autônomas de tributação, sob o argumento de respeito ao pacto federativo. O resultado foi a criação de um IVA dual, nos moldes do modelo canadense e indiano, composto pelo IBS (estadual e municipal) e pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), de competência federal. Ainda que inspirada na simplificação, a proposta evoluiu para algo bem mais complexo.

Ambos os tributos, apesar de “gêmeos” no papel, com regras comuns de fato gerador, base de cálculo, sujeição passiva, regimes específicos e não cumulatividade, geraram desdobramentos que caminham na direção oposta à prometida simplicidade e segurança jurídica.

Na origem dos debates, a reforma foi concebida sob uma série de premissas: (a) simplificação do sistema por meio da criação de dois IVAs em substituição a cinco tributos (IPI, ICMS, ISS, PIS e Cofins); (b) adoção plena da não cumulatividade; (c) instituição de legislação única, simples e objetiva; (d) tributação no destino para pôr fim à guerra fiscal; (e) desoneração das exportações; (f) neutralidade da carga tributária e dos efeitos econômicos; (g) cashback para famílias de baixa renda; (h) racionalização das obrigações acessórias; (i) melhoria no relacionamento entre Fisco e contribuinte; e (j) redução de conflitos e do contencioso administrativo e judicial.

Na prática, poucas dessas promessas foram efetivamente cumpridas – e, mesmo aquelas que avançaram parcialmente, ainda suscitam cautela. É o caso da tributação no destino, cujo desenho normativo na EC 132/23 poderá reproduzir distorções similares às que levaram o STF a declarar inconstitucionais dispositivos da “nova lei do ISS” (vide ADI 5.835). Também a racionalização das obrigações acessórias depende da forma como será regulamentada, sem garantia de que evitará o excesso burocrático.

As demais promessas, contudo, sofreram reveses profundos:

Simplicidade: O número de tributos não foi efetivamente reduzido. Foram extintos cinco e criados outros cinco: IBS, CBS, IS (Imposto Seletivo), a Contribuição sobre Produtos Primários e Semielaborados e o próprio IPI, que continua existindo.
Não cumulatividade: Severamente comprometida. O crédito do contribuinte depende do recolhimento do tributo pelo fornecedor anterior, o que cria um modelo distorcido de “split payment” – adotado apenas por 13 dos 175 países que utilizam o IVA, e já abandonado por dois na Europa.
Legislação única e objetiva: A LC 214/25 já possui mais de 500 artigos, com dispositivos longos, confusos e, por vezes, contrários à Constituição. A legislação incorporou excessos dos regulamentos do IPI e do ICMS, trazendo para o novo modelo os vícios do antigo.
Desoneração das exportações: Comprometida por má interpretação do art. 153, §6º, VII da EC 132/23, que resultou na equivocada tributação de minérios exportados.
Neutralidade: Setores como o de serviços sofreram aumentos massivos de carga tributária, e a proliferação de regimes especiais gerou distorções alocativas graves.
Cashback: A devolução prevista está muito aquém de produzir efetiva desoneração das famílias de baixa renda.

E quanto aos dois últimos compromissos – melhoria na relação Fisco-contribuinte e racionalização do contencioso – os sinais são ainda mais preocupantes.

A LC 214/25 e o PLP 108/23 consagram um modelo de fiscalização e contencioso que pode resultar em ainda mais complexidade. Embora a reforma tenha previsto uniformização legislativa para CBS e IBS, a sua interpretação e fiscalização será pulverizada entre todas as esferas federativas.

O contribuinte poderá ser alvo de múltiplas autuações por cada estado e município onde houver destino de mercadorias ou serviços. A delegação de competências para fiscalização e julgamento foi limitada a valores irrisórios, e a coordenação entre fiscos distintos só ocorrerá se coincidentes o sujeito passivo, o período fiscalizado e o fato gerador – o que na prática é raro.

Além disso, enquanto a CBS será julgada pelo Carf, o IBS será julgado por câmaras administrativas espalhadas pelas 27 unidades federativas. Somente após o esgotamento das instâncias inferiores será possível a atuação de um comitê nacional para uniformização, o qual, espantosamente, não contará com participação dos contribuintes.

Esse Comitê de Harmonização, formado apenas por representantes das fazendas federal, estaduais e municipais, será responsável por decisões com efeito vinculante para toda a administração tributária. Ressurge, assim, uma espécie de “recurso hierárquico” sem contraditório, e sem qualquer representação da sociedade civil ou do setor produtivo.

No plano judicial, o cenário também é preocupante. A CBS será julgada pela Justiça Federal, e o IBS, por todos os Tribunais de Justiça dos estados onde houver destino das operações. Em ações preventivas, será necessário litisconsórcio passivo com todos os entes federativos envolvidos – algo que compromete a efetividade das ações e sobrecarrega o sistema judiciário.

Apesar do discurso reformista e da promessa de modernização, a reforma tributária, como está sendo implementada, corre o risco de repetir – e até agravar – os erros do passado. A ausência de integração entre administrações tributárias e a multiplicidade de interpretações sobre os mesmos dispositivos legais criam um sistema mais litigioso, incerto e oneroso.

Se o que se deseja é um modelo tributário simples, justo e eficiente, será necessário repensar urgentemente a fragmentação de competências e promover uma verdadeira integração entre os entes federativos. Caso contrário, a tão sonhada racionalização do sistema tributário brasileiro continuará sendo apenas uma promessa – agora, ainda mais distante.

José Mário
Advogado do Escritório Crippa Rey Advocacia Empresarial