ASPECTOS GERAIS DO DIREITO FALIMENTAR BRASILEIRO E A CRIAÇÃO DE SUBCLASSES NO PLANO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL

31/07/2020

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A análise da evolução normativa no Brasil em matéria falimentar, mesmo que de forma sucinta, é necessária para entendermos os mecanismos e os objetivos centrais da atual legislação.

Assim sendo, a doutrina buscou estabelecer marcos na história do direito concursal, para melhor elucidar o pensamento do legislador frente às exigências do sistema falimentar.

Ricardo Negrão aduz que o direito falimentar brasileiro pode ser dividido em cinco fases: a primeira delas representa o período português[1], a segunda é a fase imperial, inaugurada pelo advento do Código Comercial em 1850[2], a terceiro fase é o período republicano, estabelecido pelo Decreto n. 917 em 1890[3], a quarta fase é intitulada por ele como pré-empresarial, que introduziu o Decreto-Lei n. 7.661/45[4], e a quinta fase iniciou-se com a tramitação do projeto de Lei nº 4.376/93, que perdurou por 12 (doze) anos, até ser aprovada nossa atual legislação sobre falência, recuperação judicial e extrajudicial (LREF)[5].

Edilson E. das Chagas[6] destaca que, em um primeiro momento, as normas se limitavam a punir o devedor, e, após esse período a liquidação da empresa passou a ser o enfoque do legislador, visando o pagamento dos credores, até chegarmos no entendimento atual, onde a empresa é vista como fonte produtora de renda e precisa ser preservada para poder cumprir sua função social, mantendo assim, a circulação de bens e serviços, a arrecadação de tributos para o Estado e estimulando a livre-concorrência.

O instituto da Recuperação Judicial está regulado nos Capítulos III e IV da LRF[7], e, com o respaldo do Poder Judiciário, este instrumento busca proporcionar os meios para o soerguimento de empresas que estejam enfrentando um momento de crise econômico-financeira.

No tocante às inovações trazidas pelo advento da Lei 11.101/2005, o princípio da preservação da empresa (artigo.47) foi a mais significativa.

Inegavelmente, a legislação atual trouxe inúmeros avanços, mas vale ressaltar que a lei acabou enfatizando a burocracia, diante da exigência exorbitante de documentação, como requisito mínimo para ajuizamento do pedido, o que, por vezes, acaba desencorajando o empresário a seguir adiante com a recuperação.

Em 2014, o legislador instituiu a LC n° 147 que modificou alguns pontos da lei, visando melhor atender as demandas dos micros e pequenos empresários. Por esta razão, foram instituídos, por exemplo, o Plano Especial, e inserida a Classe IV, a qual estão arrolados os créditos de titularidade de empresas que estejam enquadradas como ME e EPP.

Em que pese o excesso de formalidades, a LREF, ao criar diversos instrumentos como a divergência, a habilitação e a impugnação de crédito, e a objeção ao Plano de Recuperação, a LRF possibilitou um maior protagonismo ao credor no processo de Recuperação Judicial.

A divisão dos créditos em classes, (art. 41, I, II, III e IV, LREF) é aplicada tanto na Recuperação Judicial quanto na Falência, no entanto, com objetivos distintos.

No tocante à Recuperação Judicial observa-se que esta classificação é posta como forma de organização, servindo para reunir credores que tenham as mesmas predileções. Já em se tratando de processo falimentar, quanto à liquidação da empresa, a classificação dos créditos é empregada para seguir uma ordem de preferência no momento do pagamento.

Acerca das votações, Ricardo Negrão[8] destaca que as deliberações devem respeitar os princípios basilares da Recuperação Judicial, sendo elas a (i) universalidade, as quatro classes sujeitas ao plano deverão ser ouvidas, entretanto, a classe que não for atingida, não terá direito a voto; (ii) votação por cabeça, o que abrange as classes I e IV, nas quais será considerada a maioria simples dos credores, independentemente do valor de seus créditos; e (iii) a votação por dupla maioria, que alcança as classes II e III, onde considerar-se-á aprovado o plano se de acordo mais da metade do valor total dos créditos presentes e, cumulativamente, a maioria simples dos credores presentes.

Marlon Tomazette[9] destaca que a lei exige que a votação seja feita nesses critérios, para garantir que a aprovação do plano seja feita por maior parte dos credores e não apenas pelos credores que possuem créditos de maior monta.

Além destas hipóteses, se preenchidas as disposições elencadas nos §§ 1º e 2º do art. 58 da LRF, o juiz poderá conceder a recuperação judicial, ainda que o plano não tenha sido aprovado por todas as classes presentes em assembleia.

Neste aspecto, tivemos uma forte influência do regime norte americano em nosso atual sistema falimentar, mais precisamente na figura do cram down, o qual permite que o juiz homologue o plano de recuperação, mesmo sendo este rejeitado em assembleia geral de credores, desde que respeitados os critérios legais (art.58,§1º, LREF). Para ser possível a aplicação do cram down, um dos critérios do artigo 58, é que não haja tratamento diferenciado entre os credores que rejeitaram o plano de pagamento.

Destaca Scalzilli[10], que no sistema brasileiro, o cram down é utilizado para diminuir o quórum de aprovação pelo juiz, tendo em vista o princípio da preservação da empresa e sua função social, mas de maneira alguma, significa ignorar o arbítrio dos credores.

Haroldo M. Duclerc Verçosa[11], aduz que esta forma de aprovação não chega a ser o cram down existente no direito norte americano, pois, no Brasil, criou-se apenas um quórum alternativo para a aprovação do plano.

Não há de forma expressa na LREF, a autorização para a criação de novas classes ou subclasses no Plano de Recuperação Judicial, ocorre que na prática as empresas em recuperação adotam essas medidas, gerando algumas controvérsias.

A LREF compreende o princípio da paridade entre os credores na Falência (art.126), no entanto, os efeitos deste princípio ecoam na Recuperação Judicial, possibilitando o controle de legalidade do plano de recuperação.

Neste sentido, muitos credores sentindo-se prejudicados, buscam respaldo no judiciário, a fim de modificar o plano de recuperação, alegando que a criação de subclasse infringiria o Princípio da Igualdade entre Credores ou Par Conditio Creditorum (art. 58, § 2º LREF).

Ainda, diante da ampla discussão sobre a criação de subclasses no Plano de Recuperação Judicial e a omissão legislativa, a Jornada de Direito Comercial buscou sanar esta lacuna em seu Enunciado nº 57:

“O plano de recuperação judicial deve prever tratamento igualitário para os membros da mesma classe de credores que possuam interesses homogêneos, sejam estes delineados em função da natureza do crédito, da importância do crédito ou de outro critério de similitude justificado pelo proponente do plano e homologado pelo magistrado”

Cumpre destacar que tal problemática não se confunde com a figura do credor colaborativo ou credor estratégico, sendo um aliado no processo de soerguimento da empresa, art. 67, parágrafo único c/c art. 84, V, ambos da LREF.

Segundo Daniel Báril e Guilherme Queirolo Feijó[12], o tratamento distinto entre credores, tendo em vista suas preferências legais, não configura ilegalidade, mas sim a discriminação injustificada de credores que possuam a mesma prioridade de pagamento.

Luis Felipe Salomão e Paulo Penalva Santos[13] salientam que não há nenhuma ressalva quanto ao tratamento diferenciado aos credores de uma mesma classe, sendo o plano aprovado pelas três classes de credores.

A questão discutida é se a criação de subclasses no plano ocasiona tratamento diferenciado entre credores de uma mesma classe. Diante disso, a jurisprudência passou a permitir a criação de subclasses, pois entendeu ser possível haver tratamento diferenciado entre credores de uma mesma classe, desde que sejam demonstrados no plano de recuperação, critérios objetivos, e que não afete direito de credores isolados ou minoritários.

Em consequência disto, nota-se que se sedimentou o entendimento nos Tribunais, que a criação de subclasses na elaboração do Plano de Recuperação Judicial, não afeta o princípio da igualdade entre credores.

Nesta senda, o Superior Tribunal de Justiça consolidou ser possível a criação de subclasses:

“A criação de subclasses entre os credores da recuperação judicial é possível desde que seja estabelecido um critério objetivo, justificado no plano de recuperação judicial, abrangendo credores com interesses homogêneos, ficando vedada a estipulação de descontos que impliquem em verdadeira anulação de direitos de eventuais credores isolados ou minoritários”.

Desta maneira, é viável a criação de subclasses desde que observado o princípio da igualdade real, proporcionando tratamento igual para aqueles que se encontram em pé de igualdade, e de forma desigual aqueles que se encontram em condições desiguais.

Levando-se em conta o que fora exposto, quanto à evolução social e legislativa, em relação ao Direito Comercial, e considerando que estamos em constante transformação, é difícil a legislação acompanhar e responder a todas as demandas que surgem. Assim, é a jurisprudência que vem cumprindo este papel, preenchendo as lacunas da Lei 11.101/2005.

Ademais, o posicionamento jurisprudencial de flexibilização da norma, ao possibilitar a criação de subclasses, sem deixar de verificar com máximo rigor os limites legais, fornece aos envolvidos, os mecanismos necessários para concretizar os preceitos estabelecidos no plano.

Percebe-se que essa flexibilização se faz necessária, pois ao criar a norma o legislador não poderia prever os diversos percalços vividos no dia a dia pelas empresas e pelos próprios julgadores. É de suma importância que os magistrados mantenham esse olhar sensível às situações vivenciadas pelos empresários que se encontram em uma situação de crise econômico-financeira e que precisam se socorrer no judiciário para manter a empresa a fim de que esta possa exercer a sua função social.

 

[1] NEGRÃO, Ricardo. Curso de Direito Comercial e de Empresa – Recuperação de Empresas, Falência e Procedimentos. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019. p.38.

[2] NEGRÃO, Ricardo. Curso de Direito Comercial e de Empresa – Recuperação de Empresas, Falência e Procedimentos. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019. p. 41.

[3] NEGRÃO, Ricardo. Curso de Direito Comercial e de Empresa – Recuperação de Empresas, Falência e Procedimentos. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019. p. 43.

[4] NEGRÃO, Ricardo. Curso de Direito Comercial e de Empresa – Recuperação de Empresas, Falência e Procedimentos. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019. p.45.

[5] NEGRÃO, Ricardo. Curso de Direito Comercial e de Empresa – Recuperação de Empresas, Falência e Procedimentos. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019. p. 45.

[6] CHAGAS, Edilson Enedino das. Direito empresarial esquematizado®. São Paulo: Saraivajur, 2019, p. 755.

[7] LREF: Lei de Recuperação de Empresas e Falência.

[8] NEGRÃO, Ricardo. Manual de Direito Empresarial.10º ed. São Paulo: Saraivajur, 2020. p. 282.

[9] TOMAZETTE, Marlon. Curso de Direito Empresarial – 3. Falência e Recuperação de Empresas. 7ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. p. 237.

[10] SCALZILLI, João Pedro; SPINELLI, Luis Felipe; TELLECHEA, Rodrigo. Recuperação de empresas e falência: teoria e prática na Lei 11.101/2005. São Paulo: Almedina, 2018, p. 134.

[11] VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Recuperar ou não recuperar, eis a questão: o poder/dever do juiz objetivando a preservação da empresa – configurações e limites. In: CEREZETTI, Sheila C. Neder; MAFIIOLETTI, Emanuelle Urbano (Org.). Dez Anos da Lei no 11.101/2005: estudos sobre a lei de recuperação e falência. 1a ed. São Paulo: Almedina, 2015, p. 359.

[12] BÁRIL, Daniel; FEIJÓ, Queirolo Guilherme. Cram Down: Considerações Críticas à Importação do Regime do Chapter 11 para o Regime Legal da Lei 11.101. Recuperação Judicial de Empresas: temas atuais. Porto Alegre. OAB/RS. 2018. p. 53.

[13] SALOMÃO, Luis Felipe; SANTOS, Paulo Penalva. Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falência – Teoria e Prática. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 173.


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