Bens essenciais à empresa em recuperação judicial e a possibilidade de mitigação da regra do artigo 49, §3º, da Lei de n° 11.101/2005
A recuperação judicial de empresas é um instrumento jurídico adotado pelo sistema brasileiro que tem por objetivo ajudar empresas viáveis, mas em crise, a superar esse momento de dificuldade de maneira a preservar sua atividade empresarial e, consequentemente, também preservar empregos, circulação de bens e serviços e todos os demais benefícios econômicos e sociais que decorrem da atividade empresarial saudável.
Nesse sentido, mostra-se importante o estudo do procedimento jurídico voltado a lidar com as questões relacionadas à crise da empresa. O sistema brasileiro, em específico na Lei de n° 11.101/2005, traz algumas ferramentas, sendo elas a falência, a recuperação judicial e a extrajudicial de empresas.
Além disso, a legislação mencionada anteriormente também propõe mecanismos estratégicos de soerguimento, considerando o princípio constitucional da função social da empresa, e o princípio norteador da lei falimentar, o da preservação da empresa.
Entre tais mecanismos, será abordado no presente informativo o conceito de bem essencial à empresa em recuperação, tratado no artigo 49, §3º, da Lei de n° 11.101/2005 e, pelo qual, a devedora fica temporariamente a salvo de ser expropriada de bens de terceiros (credores) que estejam ou venham a estar em sua posse desde que tais ativos sejam considerados efetivamente essenciais ao desenvolvimento de suas atividades e à própria recuperação em si.
Apesar de parecer de fácil interpretação o conceito, sua aplicação na prática está longe de ser simples, pois não raras vezes envolve não apenas bens que são da própria empresa, mas em certos casos bens de outras companhias que eventualmente façam parte do grupo econômico ou bens de terceiros garantidores, como por exemplo, sócios da empresa.
Nessa linha, é de suma importância definir o conteúdo da expressão bens essenciais à recuperação e sua abrangência.
A previsão do artigo 49 §3º, da Lei 11.101/2005, impossibilita que determinado credor, com crédito não sujeito aos efeitos da recuperação judicial exproprie da Recuperanda durante o prazo de 180 dias.
Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos.
(...)
§ 3º Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º do art. 6º desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial.
O respectivo prazo, conhecido como stay period, possibilita que as execuções movidas em face da devedora fiquem suspensas e os bens considerados essenciais à recuperação judicial permaneçam com a companhia.
O referido período propõe que as ações ficam suspensas por 180 dias, sendo possível em caso de comprovada necessidade a prorrogação por uma única vez. Vejamos:
Art. 6º A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial implica:
(...)
§ 4º Na recuperação judicial, as suspensões e a proibição de que tratam os incisos I, II e III do caput deste artigo perdurarão pelo prazo de 180 (cento e oitenta) dias, contado do deferimento do processamento da recuperação, prorrogável por igual período, uma única vez, em caráter excepcional, desde que o devedor não haja concorrido com a superação do lapso temporal.
Quanto a referida suspensão, o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, do Superior Tribunal de Justiça salienta:
"essa pausa na perseguição individual dos créditos é fundamental para que se abra um espaço de negociação entre o devedor e seus credores, evitando que, diante da notícia do pedido de recuperação, se estabeleça uma verdadeira corrida entre os credores, cada qual tentando receber o máximo possível de seu crédito, com o consequente perecimento dos ativos operacionais da empresa" (STJ, 2ª Seção, CC 168.000/AL, rel. min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 11/12/2019 e publicado em 16/12/2019).
Assim, é de suma importância o período de suspensão, o que possibilita a Recuperanda praticar uma série de atos sem a pressão que naturalmente parte dos credores.
Com relação à essencialidade dos bens para a empresa, é necessário analisar se a fonte produtora continuaria funcionando ou seria significativamente prejudicada por tal ato. Caso for confirmado prejuízo, geralmente, aplica-se a exceção prevista no artigo 49, §3º, Lei 11/101/2005.
Há de ressaltar, entretanto, que não basta a simples alegação de que o bem é essencial à empresa porque este lhe gera recursos financeiros, mas sim, a comprovação efetiva de que o bem é indispensável à manutenção das atividades da empresa, ou seja, sem ele a sociedade ficaria impossibilitada de operar.
Nesse sentido, segue decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. CORTE. IMPOSSIBILIDADE. ESSENCIALIDADE DO SERVIÇO. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO DA EMPRESA. ARTIGO 47, LEI Nº. 11.101/2005. Trata-se de agravo de instrumento interposto em face da decisão que determinou que a empresa agravante se abstenha de interromper o fornecimento de energia elétrica à recuperanda pelo prazo de noventa dias. Considerando que a energia elétrica é bem essencial e indispensável para continuidade produtiva da parte recorrida, a suspensão no fornecimento geraria notório prejuízo na atividade produtiva da agravada e afrontaria o princípio basilar da Preservação da Empresa, o qual é norteador do procedimento recuperatório, positivado no artigo 47 da Lei nº. 11.101/2005. Ademais, o corte no fornecimento de energia elétrica inviabilizaria a atividade da empresa recuperanda, ora agravada, bem como impossibilitaria o cumprimento de sua função social, pelo que, geraria inquestionável prejuízo e lesão a toda a cadeia de fornecedores, funcionários, fisco e credores, os quais não teriam os seus créditos satisfeitos. Acrescente-se ser razoável o período de noventa dias concedido pelo juízo a quo para manutenção do serviço mesmo diante do não pagamento da contraprestação, pois neste interregno de tempo poderá a recuperanda organizar suas finanças a fim de adimplir em dia, e com prioridade, as faturas de energia elétrica, pois se trata de um bem essencial para continuidade das atividades da empresa. Além disso, a medida deferida não importa na inexigibilidade dos valores devidos pela recuperanda à concessionária recorrente, sendo que os créditos da agravante possuem prioridade de pagamento, tendo em vista se tratarem de extraconcursais, nos termos do art. 84, inc. III, da Lei nº 11.101/2005. Assim, a manutenção da decisão agravada é medida impositiva. AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO.(Agravo de Instrumento, Nº 70084207851, Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Niwton Carpes da Silva, Julgado em: 23-07-2020) (grifo nosso)
Ocorre que por vezes, o bem, mesmo que em posse da Recuperanda e utilizado exclusivamente para desenvolvimento das atividades da empresa, está em nome de terceiro ou em nome de algum sócio.
Nesses casos, não há previsão legal e a jurisprudência não é uniforme. Assim, considerando que o bem não está em nome da Recuperanda, não estaria sobre o amparo legal do stay period por não se tratar de propriedade da empresa. Desta forma, poderia o credor alcançar o respectivo bem.
Todavia, é prudente que sejam observadas as particularidades de cada caso concreto, sob pena de esvaziar o propósito da recuperação judicial, inviabilizando a continuidade produtiva da empresa.
Por fim, insta mencionar que a competência para deliberar sobre bens essenciais da Recuperanda é do Juízo da recuperação judicial, consoante jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.
A conclusão a que se chega é a de que será indispensável a análise de critérios objetivos. Deverá ser verificado se o bem é utilizado no processo produtivo da empresa e/ou necessário ao desempenho da atividade econômica exercida pelo empresário, buscando a superação da crise empresarial e soerguimento da companhia.
Dessa forma, diante da análise dos respectivos objetivos, há a possibilidade de aventar a mitigação da regra prevista no artigo 49, §3º, Lei 11/101/2005, nos casos em que o bem, por exemplo, está em nome de sócio da empresa, mas é utilizado exclusivamente para fonte produtora da sociedade.
Pois nesses casos, ainda que o bem não seja de propriedade da Recuperanda e esteja sem a proteção do stay period, deve ser analisada a essencialidade para a atividade econômica do negócio, e caso positivo, não deve ser retirado desta, sob pena de frustrar todo o processo recuperacional.
Portanto, é necessária expressa demonstração da essencialidade do bem para atividade principal da companhia, o que possibilitará ao juízo recuperacional decidir com maior segurança jurídica e clareza acerca da essencialidade de determinado bem, podendo mitigar a regra prevista na legislação e/ou até mesmo acabando com determinados abusos cometidos por alguns credores não sujeitos ao plano.
Porto Alegre, 06 de outubro de 2021.
Camila Luzardo – OAB/RS 119.383
Advogada do Departamento de Reestruturação Empresarial
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