Vimos informar, sobre a publicação da lei n. 13.988, de 14 de abril de 2020 que, em seu artigo 28, alterou a Lei n. 10.522, de 19 de julho de 2002, acrescentando o artigo 19E, com a conversão da MP n° 899/2019, apelidada de MP do Contribuinte Legal acrescentando o seguinte teor:
“art. 19-E. Em caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, não se aplica o voto de qualidade a que se refere o § 9º do art. 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, resolvendo-se favoravelmente ao contribuinte.”
Em linhas gerais, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) é o responsável pelo julgamento dos recursos, após primeira instância, referente a processos fiscais sobre tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB).
Com base nessa nova disposição legal trazemos análise sobre os impactos do fim do voto de qualidade no CARF, ponderando sobre possíveis efeitos nas representações fiscais para fins penais, quanto aos crimes contra a ordem tributária.
Primeiramente esclarecemos que, a referida norma alterou a atuação do CARF que antes tinha voto de minerva, voto de desempate, para julgamentos com empate nos votos, ou seja, se metade do colegiado (votantes) optassem pela constituição de crédito tributário e a outra metade não, o CARF podia votar por desempatar para qualquer lado, mesmo que em prejuízo do contribuinte.
Portanto, anteriormente, quando uma investigação era instaurada no âmbito administrativo, no caso de um julgamento e que os votantes empatassem, metade entendendo pela não ilicitude e a outra metade pela ilicitude, com o voto de qualidade, poderia ser desempatado pelo CARF em desfavor ao contribuinte, ou seja, o desempate poderia ser em malefício ou benefício. Porém, de agora em diante, os recursos estarão sujeitos a uma nova regra de julgamento mais favorável ao contribuinte.
Com tal reflexão surge o questionamento, se hoje fossem julgadas as mesmas condutas, seriam entendidas como lesivas ao fisco?
Em caso de empate não, pois sem o voto de qualidade, a resolução deverá ser favorável ao contribuinte.
Hoje, existem ações penais provenientes de constituições de créditos tributários em que o CARF decidiu, com o voto de desempate, em contrário a norma atual vigente, em malefício ao contribuinte.
Portanto, hoje seria possível manter a persecução penal sobre tributos que de fato, se analisados pela legislação vigente, sequer seriam devidos? Podemos aplicar esse entendimento às questões passadas?
Preocupação essa que, no momento se estendeu ao Procurador Geral da República (PGR) que pediu, via ofício[1], que o Presidente da República vetasse o artigo que estamos tratando, trazendo vida o voto de qualidade do CARF, apontando que a alteração legislativa poderia “afetar a eficácia e a credibilidade do sistema persecução penal pátrio, no que se refere ao combate aos crimes fiscais”.
Para o PGR, com a nova sistemática de julgamento no CARF poderia se alegar que “tratando-se de lei que repercute na esfera penal de forma mais benéfica, deve ser aplicada retroativamente, comprometendo-se importantes investigações e processos em curso, impedindo-se que tantas outras se iniciem a partir das representações encaminhadas pelas RFB”.
De fato, com a nova norma, mais benéfica, sobre a situação penal do contribuinte investigado ou acusado pela prática de crime contra a ordem tributária, imperioso que seja aplicada de forma retroativa a nova norma a todos os inquéritos policiais e processos criminais advindos dos julgados pelo voto de qualidade no âmbito do Carf, que geraram lançamentos tributários de modo prejudicial ao contribuinte (de modo inverso a lei atual).
Só há justa causa para a persecução penal quando se tem uma certeza sobre a existência material de um fato típico, quando há materialidade delitiva, não havendo constituição de crédito tributário não há motivação para o seguimento de processo na esfera penal.
Assim, só existe processo criminal advindo de crimes contra a ordem tributária, após investigação e constituição definitiva do crédito tributário.
Posto isso, fica claro que todos os inquéritos policiais e os processos criminais que estiverem em curso, por decisões baseadas em julgamentos com voto de qualidade, devem ser trancados e todas as condenações devem ser anuladas, imediatamente e independentemente de eventual revisão na esfera tributária.
Especificamente quando falamos em crimes contra a ordem tributária, temos um sério problema quanto a constituição do crédito tributário. Há pacífico entendimento de que não pode haver crime tributário se não houver redução ou supressão de um tributo devido, conforme a Súmula Vinculante 24 “não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/1990, antes do lançamento definitivo do tributo”.
Desse modo, “em razão da pendência de recurso administrativo perante as autoridades fazendárias, não se pode falar de crime. Uma vez que essa atividade persecutória funda-se tão somente na existência de suposto débito tributário, não é legítimo ao Estado instaurar processo penal cujo objeto coincida com o de apuração tributária que ainda não foi finalizada na esfera administrativa”[2].
Assim, a aplicação retroativa e imediata do fim do voto de qualidade aos procedimentos criminais é consequência inevitável aos crimes contra a ordem tributária, devendo ser suspensas as persecuções penais existentes referentes a casos em que há incerteza sobre a constituição do crédito tributário, na medida que se o julgamento de qualidade não mais existe, tendo em vista a nova norma, devem prevalecer entendimentos favoráveis aos contribuintes.
Dessa forma, operou-se abolitio criminis (expressão em latim sobre crimes que não existem mais) referente a todas condutas que à época foram julgadas ilícitas pelo voto de desempate do Carf.
Portanto, acompanharemos de forma criteriosa o caminhar do pedido do Procurador Geral da República e os novos desdobramentos dessa mudança legal, primando pela melhor aplicação em consonância com o direito.
O escritório Crippa Rey Advogados está à disposição para esclarecimentos.
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[1] http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/OficioPR.pdf
[2] HC 102.477, voto do rel. min. Gilmar Mendes, 2ª T, j. 28-6-2011, DJE 153 de 10-8-2011
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