O denominado “pacote anticrime”, de 2019, dentre as várias modificações no nosso ordenamento jurídico, trouxe em seu artigo 28-A do Código de Processo Penal o acordo de não persecução penal, a ser proposto antes da propositura da ação penal. Não há nada tão inovador quanto parece, pois já era há muito falado e inclusive modificado nas resoluções do Conselho Nacional do Ministério Público. O acordo é cabível em crimes sem violência ou grave ameaça, com pena mínima inferior a 4 anos onde haja confissão do fato pelo agente. Deve ser proposto quando o Ministério Público julgar necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime.
Tal afirmação sobre “necessário e suficiente” nos traz uma falsa impressão de discricionariedade não é mesmo? Afinal, o juiz também tem o poder de rejeitar o acordo quando considerar inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições impostas no ajuste. A problemática não está na possibilidade de rejeição do acordo, mas sim de tais limites não serem delineados. Notamos aqui, em função do caráter de “pena” do acordo, uma semelhança com o art. 59 do CP que exige que a imposição seja necessária e suficiente para a reprovação e prevenção do crime e, portanto, a competência do juiz para examinar.
Além dos requisitos já citados, o acordo só é proposto pelo Ministério Público mediante as seguintes condições (ajustadas cumulativa e alternativamente):
I - reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo;
II - renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime;
III - prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Código Penal);
IV - pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Código Penal, a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou
V - cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.
Conforme o § 2º, I, II, III e IV do mesmo artigo(28-A), o acordo não será admitido se for cabível a transação penal (outra espécie de acordo - lei nº 9.099/95); ou se o investigado for reincidente ou houver indícios de que pratique crimes de forma habitual ou profissional – exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas; se o agente tiver sido beneficiado nos últimos 5 anos por transação, suspensão condicional do processo ou acordo de não persecução penal; ou, por fim, se o crime for praticado no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou contra a mulher por razões da condição de sexo feminino.
O acordo de colaboração será formalizado por escrito e o investigado deve estar acompanhado de advogado em audiência na qual o juiz verificará a sua voluntariedade e regularidade, tomando a oitiva do agente. Caso haja homologação pelo juiz das garantias, os autos serão devolvidos ao parquet para que se inicie a execução perante o juízo de execução penal e após o cumprimento integral dos termos do acordo, será extinta a punibilidade do agente.
A celebração do acordo não constará na certidão de antecedentes criminais (salvo registro para evitar que o mesmo agente seja beneficiado novamente pelo instituto em um prazo inferior a 5 anos como consta no § 12). Na hipótese de descumprimento do acordo, o Ministério Público deve comunicar o fato ao juízo para fins de rescisão e posterior oferecimento de denúncia. Além disso, o descumprimento pode ser utilizado como justificativa para eventual não oferecimento de suspensão condicional do processo.
O prazo prescricional não corre enquanto não cumprido ou rescindido o acordo de não persecução penal, de forma que não há risco de ocorrer prescrição nestes casos, ao contrário do que ocorre na transação penal. Havendo discordância do magistrado quanto aos termos do acordo, por entendê-lo abusivo, insuficiente ou inadequado, os autos serão devolvidos ao Ministério Público para que seja reformulada a proposta de acordo, com a concordância do investigado e seu defensor (§ 5º). E se o Promotor não concordar com a revisão dos termos originais temos duas opções: recorrer da decisão, através de Recurso em Sentido Estrito, ou simplesmente não proceder à alteração, quando então o magistrado recusará a homologação do acordo e devolverá os autos, para que o Ministério Público analise se há necessidade de complementação das investigações, ou ainda se é o caso de oferecimento de denúncia (§ 8º). O parquet pode também requerer o arquivamento da investigação, na oportunidade, caso em que determinará as providências previstas no art. 28 do CPP.
Caso o investigado entenda que faz jus ao acordo de não persecução, mas a proposta não tenha sido feita pelo Ministério Público poderá haver requerimento de remessa dos autos ao órgão superior, na forma do art. 28-A do Código de Processo Penal (§ 14). A vítima será intimada da homologação do acordo e de seu eventual descumprimento (§ 9º), bem como o MP deverá comunicar ao juízo qualquer descumprimento das condições estipuladas, para sua rescisão e posterior oferecimento de denúncia, podendo também não oferecer a suspensão condicional do processo em razão do descumprimento (§ 11).
Considerações quanto aos crimes tributários:
Na Lei nº 8.137/1990 temos a definição de crimes contra a ordem tributária, como por exemplo a supressão ou redução de tributos por meio de omissão, fraude, falsificação, não fornecimento de documentos obrigatórios, bem como apresentação de declarações falsas, não recolhimento de tributo ou contribuição social descontada etc. As penas mínimas não ultrapassam quatro anos, então se preenchidos os demais requisitos objetivos e subjetivos, estarão hábeis à realização do acordo.
Entretanto, nesses crimes não observamos benefícios para o investigado/acusado, pois apesar de formalmente adequado há soluções menos onerosas. Mesmo gerando a extinção da punibilidade a lei 8.137 tem em seu regramento instituto mais benéfico: Art. 34. Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na Lei nº 8.137/90, e na Lei nº 4.729/65, quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia.
Sendo a reparação do dano para o acordo o pagamento integral do débito tributário, e essa condição cumulada com qualquer outra, que é a uma realidade nos acordos, já seria desinteressante quando se pode somente pagar para que se extinga a punibilidade. Mesmo na hipótese de parcelamento, o acordo também é inviável. A redação do art. 9º da Lei 10.684/2003 determina:
Art. 9º. É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1º e 2º da Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168A e 337A do Código Penal, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento.
§ 1º. A prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão punitiva.
§ 2º. Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios.
No mesmo sentido, a redação dada pela Lei nº 12.382/2011 ao art. 83 da Lei nº 9.430/1996 reafirma que quando há parcelamento do débito tributário nos crimes previstos nos arts. 1º e 2º da Lei no 8.137/90 e crimes contra a Previdência Social, dos arts. 168-A e 337-A do Código Penal, a pretensão punitiva estatal ficará suspensa, e, quando pago integralmente o valor, a punibilidade será extinta:
§ 1º. Na hipótese de concessão de parcelamento do crédito tributário, a representação fiscal para fins penais somente será encaminhada ao Ministério Público após a exclusão da pessoa física ou jurídica do parcelamento;
§ 2º. É suspensa a pretensão punitiva do Estado referente aos crimes previstos no caput, durante o período em que a pessoa física ou a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no parcelamento, desde que o pedido de parcelamento tenha sido formalizado antes do recebimento da denúncia criminal;
§ 3º. A prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão punitiva;
§ 4º. Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos no caput quando a pessoa física ou a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos, inclusive acessórios, que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento;
§ 5º. O disposto nos §§ 1o a 4o não se aplica nas hipóteses de vedação legal de parcelamento;
§ 6º. As disposições contidas no caput do art. 34 da Lei no 9.249, de 26 de dezembro de 1995, aplicam-se aos processos administrativos e aos inquéritos e processos em curso, desde que não recebida a denúncia pelo juiz.
O Supremo Tribunal Federal adota a posição de que o pagamento do tributo feito a qualquer tempo extingue a punibilidade do crime tributário, bem como a concessão do parcelamento tributário devidamente quitada também extinguirá (HC 116.828/SP, DJ 13/08/2013). O Superior Tribunal de Justiça, no mesmo sentido, defendeu a posição, dizendo:
(…) não há como se interpretar o artigo 9º, § 2º, da Lei 10.684/2003 de outro modo, senão considerando que o adimplemento do débito tributário, a qualquer tempo, até mesmo após o advento do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, é causa de extinção da punibilidade do acusado (HC 362.478/SP, DJe 20/09/2017).
O art. 9º da Lei n.° 10.684/2003 continua em vigor?
SIM! O pagamento do tributo a qualquer tempo extingue a punibilidade do crime tributário. O art. 9º da Lei n.°10.684/2003 não foi revogado e continua em vigor. Ao contrário das Leis 11.941/2009 e 12.382/2011 a Lei n.°10.684/2003 trata de pagamento direto (e não de pagamento após parcelamento). Assim o pagamento integral implica a extinção da punibilidade por força do § 2º do art. 9º da Lei 10.684/2003.
Na realidade a repressão penal nos crimes contra a ordem tributária nada mais é que uma forte forma de execução fiscal. A lei privilegia o recebimento do valor devido pelo contribuinte, em detrimento da imposição de pena corporal. Assim, não se pode restringir a aplicabilidade da norma despenalizada e condicionar o pagamento a determinado marco temporal.
Com tais constatações, apesar do cabimento, o ANPP não seria uma opção viável na prática, já que o pagamento a qualquer tempo ou parcelamento (também cabível a qualquer tempo, inclusive após o trânsito em julgado) extinguirá a punibilidade. Podemos também ver pela ótica de que, impondo ao acusado a condição de quitação do débito para lavratura de ANPP, e essa ocorrendo, nada mais pode ser exigido, podendo concluir que a quitação integral do débito exigido pela Fazenda Pública é incompatível com quaisquer outras condições para a formação de ANPP. Tratamento diferente implicaria, em tese, na conduta do artigo 30 ou do 31 da Lei de Abuso de Autoridade, seja por defender punição que deve saber indevida, seja por dificultar a conclusão de procedimento penal.
O que nos faz mais sentido visando compatibilizar os institutos é que o débito deve se limitar ao valor do tributo, em seu montante principal, corrigido monetariamente. É possível, por exemplo, que a reparação do dano não envolva a extinção total do crédito tributário (artigo 156 do CTN), isto é, que se limite ao pagamento do tributo e, no máximo, da correção monetária do período, excluindo-se juros e penalidades. Nesse caso em que não há a extinção total do crédito tributário também não há a extinção da punibilidade, permanecendo legítima a persecução penal ou o ANPP. Dentro dessa proposta o dano é reparado com o acordo (pagamento do principal e da correção), mas o saldo (juros e multas) continua exigível na esfera tributária.
Sendo assim, conclui-se que o ANPP tem uma finalidade muito mais ampla do que comumente vemos, podendo ser aplicado nos casos de crimes tributários de forma a reparar tanto integralmente o dano, quanto parcialmente, corrigindo o valor ao valor do tributo.
O Escritório Crippa Rey Advogados está à disposição para orientá-los, bem como para sanar quaisquer dúvidas existentes envolvendo o debate.
Porto Alegre, 02 de julho de 2021.
Natasha Japur
OAB/RS 98.400
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